quarta-feira, 6 de julho de 2016

Ser humano em um chip

Quando se fala em chip, se pensa em celular, cartão de crédito, computador, mas poucos associam com engenharia tecidual. Nesse post veremos as novas perspectivas de simulação de um tecido, de um órgão, e até de um ser humano em um chip. Nesse chip, células são cultivadas em pequenas câmaras que imitam o ambiente de um tecido, a vascularização, as forças mecânicas que atuam sobre ele, enfim, sua fisiologia. Além disso, o que está acontecendo no chip é de fácil visualização e análise pelos cientistas. É como um tecido engenheirado, porém não com o intuito de substituir um tecido lesionado, conforme estamos acostumados na engenharia tecidual, mas sim como um micro tecido em um aparelho, um chip, que permite o estudo do desenvolvimento daquele tecido, origem de doenças e testes de novos medicamentos. De fato, a tendência na redução do uso de animais, com selecionamento de medicamentos mais promissores, e assim, barateamento de todo processo de produção de um novo remédio são enormes com essa nova tecnologia. Ainda mais, a ideia da medicina individualizada, com as células de uma única pessoa para testar os efeitos de uma medicação para aquela pessoa especificamente, se torna cada vez mais uma possibilidade real. Mas vamos tentar entender melhor o que seria um “órgão em um chip”.

No post anterior falamos sobre os organoides. A ideia dos “órgãos em um chip” é mais simples que a dos organoides, pois o chip não visa imitar por completo o órgão, mas sim suas estruturas e funcionalidades mais básicas. As vantagens, porém, seriam por exemplo uma visualização e análise dos eventos mais fáceis que nos organoides, além da colocação de um fluxo controlável de meio de cultura, imitando o fluxo sanguíneo, e de forças mecânicas que atuem sobre o órgão. Basicamente esse chip é composto por um uma câmara contendo uma membrana porosa, onde de um lado é cultivado um tipo celular e do outro lado um outro tipo celular, por exemplo uma célula de pulmão com uma célula de vaso sanguíneo. Nos chips mais simples, apenas um tipo celular pode ser utilizado. A fácil análise dos eventos se deve a micro sensores acoplados ao chip que medem por exemplo, a migração celular, a pressão do fluido e a integridade da barreira entre os dois tipos celulares.


Agora, você deve estar achando que estamos falando tudo em teoria, porém diversos órgãos já foram “colocados” em um chip, como pulmão, rim, intestino, fígado, coração, osso, medula óssea, córnea, pele e nervos. E o mais interessante de tudo, é que pesquisadores do Instituo Wyss para Engenharia Inspirada Biologicamente da Universidade de Harvard nos Estados Unidos estão propondo o “ser humano em um chip”. Eles estão desenvolvendo uma máquina que integrará diversos “órgãos em um chip”, imitando praticamente todo o corpo humano. Assim, seria possível investigar, por exemplo, o efeito que um medicamento aerossol (como uma bombinha para asma) usado no pulmão terá no coração, se ele influenciará os batimentos cardíacos, ou se ele será excretado nos rins, ou ainda como será feito seu metabolismo no fígado. O fato é que os órgãos em chip estão aí para ficar! Quem sabe em um futuro não tão distante assim nós teremos nossos próprios “eu em um chip” para testar quaisquer tratamentos prévios antes mesmos de realizá-los em nós mesmos? Para entender mais, leia esse artigo publicado na revista Nature em 2014 ou veja essa palestra da TEDx Boston onde a pesquisadora Geraldine Hamilton explica os “órgãos em um chip”:


Um abraço biologicamente engenheirado!

terça-feira, 17 de maio de 2016

Depois das células-tronco de pluripotência induzida (iPS) vencedoras do Nobel, eis que surgem as iMS

Olá galera!! Um caso muito curioso vem trazendo novas perspectivas para reparo de tecidos através de indução de células-tronco multipotentes. Cientistas australianos vêm investigando o potencial de transformar células maduras do osso e do tecido adiposo em células-tronco adultas e, portanto, capazes de formar diversos outros tecidos. Só para lembrar, as células-tronco adultas não são capazes de se diferenciarem em todos os tecidos do corpo, o que compete somente as células-tronco embrionárias, mas sim em poucos tecidos específicos, dependendo do local de onde são retiradas. Por exemplo, as chamadas células-tronco hematopoéticas, encontradas na medula óssea, podem formar apenas células do sangue, mas não células da pele ou músculo. Por isso, são chamadas de multipotentes, e não pluripotentes, como as embrionárias. Lembra do nosso post sobre células-tronco

Talvez você também tenha ouvido falar das células-tronco de pluripotência induzida, as chamadas iPS, que renderam a pesquisadores japoneses e britânicos o prêmio Nobel de medicina em 2012O grande barato dessa pesquisa ganhadora do Nobel foi a capacidade de transformar uma célula que não é tronco, como uma célula da pele, em uma célula-tronco, quase que idêntica a uma célula-tronco embrionária. Em breve, discutiremos mais sobre as iPS aqui. Porém, um problema das mesmas é que, justamente por terem a capacidade de formar diversos tipos celulares, é preciso direcioná-las muito bem em laboratório qual destino elas terão. Por exemplo, ninguém quer implantar uma iPS no músculo, e ali se desenvolver um dente, cabelo etc (formando os temidos teratomas - "tumores monstruosos"). Foi então, que em fevereiro desse ano, foi publicado um artigo apresentando as células de multipotência induzida (iMS). Esta nova técnica fez com que células de gordura e osso pudessem ser transformadas em células-tronco multipotentes, ou seja, assim como as células-tronco adultas, isto é, ainda tronco, mas não passíveis de formar a imensa variedade de tecidos que as células-tronco embrionárias conseguem.

Isso foi possível, pois nossas células possuem” memória celular”. O que é isso? Você pode estar se perguntando:  A célula possui neurônios? Claro que não! Quando falamos em memória celular falamos que a célula mantém a programação genética para desempenhar uma determinada função. Todas as nossas células são originadas de uma única célula, o zigoto. Ao longo das divisões celulares o que ocorre é que as células filhas vão se especializando em uma determinada função adquirindo um perfil, uma memória celular. É como se as células tivessem interruptores que ligam ou desligam uma atividade específica nela. Por exemplo, uma célula de osso deve ser capaz de colocar cálcio nos ossos, uma célula de músculo deve ser capaz de contrair, e assim por diante. O que os cientistas fizeram foi deixar as células com os interruptores desligados podendo ser acionados de acordo com o local na qual essas células são inseridas, resultando em regeneração tecidual.

A grande vantagem das iMS é que elas se mostraram com capacidade de regeneração maior que as células-tronco adultas, contribuindo diretamente para a regeneração tecidual de ossos da lombar, assim como não formaram teratomas, como as células-tronco embrionárias e as iPS podem formar. Vale lembrar que esse estudo foi feito até agora em ratos e camundongos. Além disso, para promover essa reprogramação celular os cientistas usaram um composto conhecido como AZA (5-Azacytidine), já normalmente usado para tratar doenças sanguíneas, e uma molécula conhecida como PDGF-AB (fator de crescimento derivado de plaquetas-AB), muito utilizado para cultivar células-tronco em laboratório. Até então, a forma de se reprogramar as células, formando as iPS, é utilizando vírus que carregam genes para modificar essas células, o que também é ainda encarado com cautela por muitos médicos e cientistas. Ainda será necessário muito trabalho para se verificar se as iMS poderão ser utilizadas para tratar diversas doenças tais como osteoartrites, degeneração muscular, injúrias no disco espinal entre outros, além de, quem sabe, garantir algum grande prêmio aos cientistas australianos que as descobriram, assim como os cientistas japoneses e britânicos ganharam o Nobel pelas iPS.

Bom galera, esse foi mais um exemplo de como as técnicas de terapia celular tem colaborado para o desenvolvimento da engenharia tecidual e medicina regenerativa.

Um abraço biologicamente engenheirado!!

P.S.: veja esse vídeo do youtube, onde os próprios cientistas australianos explicam as células iMS. Infelizmente, por enquanto o vídeo apresenta apenas legendas em inglês =[ 

Esquema representando a técnica de desenvolvimento de células-tronco de multipotência induzida (iMS) pelos cientistas da University of New South Wales (UNSW) da Austrália. Primeiramente células de gordura são extraídas (1), tratadas com PDGF-AB e AZA (2), de forma que se modifiquem (3) e se tornem as iMS (4). Essas podem então ser cultivadas e possivelmente transplantadas (5) para regenerar tecidos.  Imagem adaptada do site theconversation.com

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Mini-órgãos: indo além da Zika e dos mini-cérebros

Oi pessoal!! Você deve estar acompanhando toda a discussão a respeito do vírus Zika e a microcefalia, não é mesmo? Você deve estar acompanhando também a participação de cientistas daqui do Brasil na tentativa de entender a relação entre esse vírus e essa doença. Esse mês, foi publicado um artigo (cujos autores são daqui do Rio de Janeiro e de Campinas) em uma das mais importantes revistas científicas do mundo, a Science, aumentando os indícios de que o Zika causa microcefalia. Para isso, os cientistas infectaram “mini-cérebros” com o vírus da Zika, e verificaram que o mesmo atrapalhou o desenvolvimento normal dos tais “mini-cérebros”. Mas afinal, o que são esses mini-cérebros? Como o próprio nome diz, são como cérebros minúsculos, na escala de poucos milímetros, com forma e funcionamento que se assemelham a um cérebro de um feto humano de 2 a 3 meses de idade. Esses mini-cérebros são formados a partir de células-tronco embrionárias ou células-tronco de pluripotência induzida (iPS), assunto que discutiremos em futuras postagens. Essas células são, então, induzidas a se comportarem como células-tronco neurais e cultivadas tridimensionalmente em pequenos biorreatores, onde a mágica acontece! As células se diferenciam, ou seja, formam diversos tipos de neurônios em camadas e estruturas que imitam um cérebro em desenvolvimento. Reparem que, nesse caso, não são usados os biomateriais já aqui discutidos no nossoblog. No máximo são usados géis em etapas iniciais da metodologia, para forçar as células a crescerem tridimensionalmente e não bidimensionalmente. Mas por que os “mini-cérebros” não são cérebros “de verdade”? Por que a gente não os deixa crescer até chegar ao ponto de poderem ser transplantados em uma pessoa? Primeiramente porque não só de neurônios se faz um cérebro. Temos que ter, por exemplo, os vasos sanguíneos, para levar sangue com os nutrientes e oxigênio para as células nervosas. Sem esses componentes, os mini-cérebros não podem ficar maiores, caso contrário suas as células mais internas iriam morrer por não ter acesso aos nutrientes e ao oxigênio. Também temos a ausência de células de defesa, as células do sistema imune, além da dificuldade ainda existente de simular em laboratório os demais eventos fisiológicos necessários para criação de um órgão em escala natural. Aliás, esse é o principal desafio da engenharia tecidual, não é mesmo? Agora, sabe o que é mais legal nisso tudo? É que embora os mini-cérebros estejam mais famosos, hoje já existem técnicas para fabricação de diversos mini-órgãos, também conhecidos como organoides. Temos o mini-intestino, mini-fígado, mini-rim, mini-pele, mini-coração, mini-próstata, mini-timo, mini-pâncreas, mini-pulmão e por aí vai! Além de nos ajudar a entender como nossos órgãos se desenvolvem e como as doenças podem acometê-los, uma das maiores vantagens dos mini-órgãos é podermos testar neles diversos medicamentos contra doenças. E ainda mais, de maneira personalizada! Um cientista poderia obter uma célula de um paciente, transformá-la em uma célula-tronco, formar um mini-órgão, e testar uma droga contra uma doença específica que funcione para aquele paciente! E não para por aí. A partir das biópsias feitas para identificação de cânceres e sua malignidade, também poderiam ser feitos mini-tumores em laboratório para testar e melhor escolher o tratamento que o paciente se submeterá contra o seu câncer. Definitivamente, os mini-órgãos vieram para ficar! Não, eles não são órgãos maduros, em tamanho real, mas nos ajudarão muito não somente a entender como nossos órgãos se desenvolvem, mas também a melhor buscar tratamentos para as doenças que os acometem. Nas palavras de Austin Smith, diretor de um importante instituto de estudo sobre células-tronco da Universidade de Cambridge na Inglaterra, “esse é provavelmente o desenvolvimento mais significativo no campo das células-tronco nos últimos cinco ou seis anos”. Um abraço biologicamente engenheirado!

Ilustração de Claire Welsh exemplificando os mini-órgãos crescendo em placas de cultura em laboratório, obtida a partir de uma revisão da revista Nature sobre o tema.

Se quiser saber ainda mais sobre mini-cérebros, clique aqui para ler uma reportagem do portal diário da saúde. 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Casos clínicos I: o primeiro transplante de uma via respiratória engenheirada.

Caros leitores, sejam bem-vindos a mais um post do engenheiro tecidual. Agora que você já está mais familiarizado com o tema e já conhece os princípios da engenharia tecidual, de vez em quando eu vou mostrar a vocês casos clínicos, ou seja, pessoas que receberam transplantes de materiais construídos em laboratório por engenharia tecidual, além de, é claro, continuar trazendo os mais recentes avanços nas pesquisas. Você verá que, ao redor do mundo, já existem diversos pacientes que já se beneficiaram diretamente da engenharia tecidual. Para começar, um dos meus casos favoritos: o transplante de uma traqueia engenheirada em 2008. A situação era a seguinte: Claudia Castillo, 30 anos, havia sofrido diversos danos em seu aparelho respiratório decorrente de uma tuberculose. A traqueia da paciente foi tratada cirurgicamente, mas o brônquio esquerdo estava condenado. Uma solução seria retirar completamente o pulmão esquerdo. Foi então que cientistas e médicos da Espanha, Inglaterra e Itália resolveram usar a engenharia tecidual. O que eles fizeram foi utilizar um pedaço de 7 cm de uma traqueia de uma doadora que havia morrido, e retirar todas as suas células e componentes que poderiam causar rejeição a paciente que iria receber essa traqueia. O pulo do gato é que os cientistas conseguiram manter praticamente intacta a estrutura da traqueia, ou seja, a matriz extracelular (lembra dela?)! Essa é uma técnica que chamamos de “acelularização”, ou seja, retirar as células do tecido, mas manter a matriz extracelular. Mas, só matriz sem célula não iria funcionar por muito tempo! Então os cientistas utilizaram células da própria Claudia para repovoar essa traqueia acelularizada. No caso, foram utilizadas células epiteliais, para as camadas mais externas, e células-tronco obtidas da medula óssea, para a camada interna de cartilagem. Para garantir que as células-tronco não formassem outro tecido ao invés de cartilagem, antes de serem injetadas, os cientistas fizeram com que elas se diferenciassem, ou seja, formassem condrócitos, que são as células que fazem cartilagem. Pois bem, finalmente, em 12 de junho de 2008, no Hospital da Universidade de Barcelona, o brônquio esquerdo doente da paciente foi removido e a traqueia doadora foi colocada no lugar. De maneira impressionante, não houve problema algum em colocar um pedaço de traqueia no lugar do brônquio, porque, além de se encaixar bem, ela manteve toda sua elasticidade graças ao sucesso do processo de acelularização. Dez dias depois da cirurgia, Claudia já tinha tido alta do hospital e não precisou tomar medicamentos imunossupressores, aqueles que pacientes que recebem transplantes normalmente tem que tomar para evitar a rejeição. Afinal, as células da própria Claudia repovoaram a traqueia, então não foi preciso tomar esses medicamentos. Não é incrível!? Em breve veremos mais casos de sucesso como esse! Ah! A Claudia hoje leva uma vida totalmente normal. Até a próxima! Um abraço biologicamente engenheirado!

Para mais detalhes, leia o artigo científico na íntegra:





















Traqueia engenheirada momentos antes da cirurgia. Imagem obtida do link:

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Espuma com capacidade de induzir formação de novo tecido ósseo


Olá amigos. O ano novo começou com a divulgação de um trabalho super interessante feito por pesquisadores franceses. Trata-se de uma espuma injetável que poderá ser usada para recuperação de ossos lesionados. Essa esponja é uma mistura de um cimento especial conhecido como CPC que significa cimento de fosfato de cálcio com um hidrogel de nome bem complicado (metilcelulose hidroxipropil-sialinizada). A tecnologia dos CPCs teve sua primeira aplicação em 1920 e desde então vem sendo utilizada em cirurgias ortopédicas. Mas as técnicas tradicionais não são favoráveis para o reestabelecimento dos tecidos mais frágeis, como as lesões de osteoporose verificadas na terceira idade. Os CPCs tradicionais utilizam microporos, o que não permite uma maior aeração, ou seja, espaço para passagem de substâncias e nutrientes para todo o tecido.
O novo material, ao invés de utilizar microporos, utiliza macroporos, ou seja, poros maiores que permitem maior aeração e oxigenação, maior crescimento de células que irão produzir a matriz extracelular óssea e, portanto, melhor recuperação do tecido ósseo. Ainda mais, a grande vantagem surge da fácil manipulação do material que, através de uma seringa, pode ser injetado na região da lesão, sem necessidade de cirurgia, trazendo assim muito menos desconforto ao paciente. Testes primários já foram realizados com excelentes resultados. A espuma se mostrou biocompatível e funcional, levando a formação de tecido ósseo no local da injeção. Já imaginou no futuro, tratar as lesões ósseas com uma simples injeção de uma espuma? Que 2016 venha com mais boas notícias científicas! Um abraço biologicamente engenheirado!
Para mais detalhes, veja o artigo científico na íntegra: 10.1016/j.actbio.2015.11.055

Espuma a olho nu (esquerda) e observada em microscópio eletrônico de varredura (direita). Imagem obtida do link: http://www.rsc.org/chemistryworld/2015/12/injectable-foam-biomaterial-bone-repair